Dados além da privacidade

Por Thoran Rodrigues, fundador e CEO da BigDataCorp

Salvador, 09/11/2021 – A importância dos dados no mundo atual não é mais uma questão polêmica. É fácil encontrar, em todos os veículos de comunicação, dezenas de matérias e artigos sobre a chamada “nova economia”, que está surgindo à nossa frente, bem como sobre a relevância central dos dados na mesma. Junto com este conteúdo, a ampla discussão na sociedade sobre questões de segurança e a proteção de informações pessoais trouxeram o tema dos dados para o discurso da sociedade em geral.

Para as empresas, os dados já são, de longe, o principal ativo. Quem tem qualquer dúvida sobre isso só precisa passar o olho pela lista das empresas mais valiosas do mundo. A Amazon, no varejo (digital e tradicional); o Google na área de tecnologia, mídia e publicidade; o Facebook nas comunicações e, novamente, na publicidade; ou o Netflix, na mídia e entretenimento. O que todas elas têm em comum? O interminável volume de dados que possuem e constantemente atualizam, além da sua capacidade de trabalhar e gerar valor sobre eles. O próprio balanço dessas empresas (e de várias outras no mercado) declara os dados como parte do seu ativo intangível, ressaltando o valor das informações para os negócios.

Os dados que essas empresas possuem, no entanto, fazem mais do que simplesmente gerar valor para elas. A concentração de informações nas mãos de algumas poucas empresas do mercado gera uma vantagem competitiva praticamente insuperável para essas empresas. Usados de forma indevida, esses dados permitem que elas eliminem ou enfraqueçam seus competidores, prejudicando os consumidores e a sociedade como um todo. Para um exemplo claro disso, só precisamos olhar para a multa que a Amazon acabou de receber na União Europeia por abusar dos dados que coleta, ou olhar para as dezenas de processos que o Google sofreu ao longo dos anos relacionados com a forma como os resultados de busca são exibidos para favorecer os seus produtos em detrimento a concorrência.

Pior, a concentração de dados gera um ciclo que garante que nenhuma legislação ou força externa consiga quebrar o monopólio virtual que essas empresas construíram. O Google apresenta resultados de busca melhores justamente por causa da quantidade de buscas realizadas em sua plataforma, o que faz com que mais pessoas busquem na plataforma, o que gera mais dados para melhorar os resultados, e assim por diante. O Facebook apresenta conteúdo que prende o interesse das pessoas, fazendo com que elas interajam mais com a plataforma, melhorando a forma como o conteúdo é recomendado, até que nenhuma outra plataforma consiga disputar a atenção das pessoas. Esses efeitos de rede – quanto mais pessoas usam, mais as pessoas querem usar – fazem com que provisões de portabilidade de dados, como as que existem na LGPD, na GDPR e em outras legislações, sejam inúteis na prática, porque nenhum consumidor quer trocar para uma plataforma que ninguém mais usa.

A força dos dados, no entanto, vai além da criação de monopólios virtuais. Os dados são um elemento de projeção de poder social, político e econômico. Vamos destrinchar o exemplo acima, da Amazon. Embora seja amplamente conhecida como uma empresa de varejo, ela atua no mercado como um grande marketplace de vendas, conectando pequenas empresas (vendedores) com consumidores. Algumas estimativas dizem que mais de 70% dos produtos vendidos por ela são, na verdade, produtos de terceiros. É um modelo similar ao do Mercado Livre, e que outras grandes empresas do comércio eletrônico, como o Magazine Luiza e a Americanas, têm adotado. Essas companhias capturam continuamente não só os dados dos clientes, mas também as informações dos produtos: quais são os produtos mais vendidos, por quanto são vendidos, quais são as melhores fotos para um determinado produto, e assim por diante.

Com todos esses dados, elas têm duas avenidas de concorrência desleal com os vendedores que estão na plataforma. De um lado, controlam os dados e o relacionamento com os clientes finais, que passam a cada vez mais confiar apenas no marketplace, esquecendo as lojas individuais. Do outro, podem entrar diretamente na concorrência, vendendo os mesmos produtos que outras empresas na plataforma a preços mais baratos, com as melhores fotos e descrições, direcionando os clientes para os seus próprios produtos, ao invés dos produtos ofertados por terceiros. Ou seja, a empresa tem o poder de pressionar e, eventualmente, quebrar o pequeno varejo, que é um dos motores de qualquer economia.

A projeção de poder, no entanto, vai muito além do lado econômico e do comércio eletrônico. Uma empresa de mobilidade, como o Uber, por exemplo, tem visibilidade dos padrões de deslocamento da população e de trânsito de uma cidade muitas vezes melhor do que os próprios órgãos públicos. Com escala suficiente, esses dados podem ser utilizados para prejudicar a receita do transporte público, inundando determinadas regiões com motoristas e promoções, e deixando outras sem nenhuma cobertura. Uma rede social como o Facebook, Twitter ou YouTube, tem mais visibilidade sobre as tendências e preferências políticas dos indivíduos do que qualquer instituto de pesquisa, e pode usar esses dados para direcionar os anúncios e o conteúdo que aparece para cada pessoa e, assim, manipular a opinião pública, ou até mesmo os resultados de uma eleição. Infelizmente, já vimos isso na prática com o escândalo da Cambridge Analytica. E esses são apenas os exemplos mais óbvios; poderíamos passar por mais uma centena deles.

Nenhuma dessas empresas e plataformas são inerentemente más, e nenhuma delas (esperamos) têm como missão desestabilizar a fábrica social dos países. Ao contrário, elas procuram trazer mais eficiência para a sociedade, mais facilidade de comunicação, mais conteúdo, mais acesso, mais atividade econômica. O seu potencial negativo está relacionado com a dimensão que atingiram. Assim, proibir, bloquear, restringir e atacá-las não é uma solução efetiva para os problemas. Tentar criar “alternativas nacionais” para elas, também não resolve o problema. Os investimentos necessários para competir efetivamente com essas empresas podem ser melhor gastos em outras frentes e, mesmo que alternativas locais sejam criadas, não existe nenhuma garantia de que vão ter sucesso.

O que se faz necessário é um entendimento amplo de que os dados são um recurso estratégico para o país, para a sociedade e para a economia. São tão importantes para o nosso futuro quanto qualquer outro recurso natural, como a energia, os recursos hídricos, ou para pegar carona em uma analogia frequente, como o petróleo. E, assim como é feito com outros recursos estratégicos, os dados e informações deveriam ser geridos e regulados com mais cuidado e atenção.

Hoje, no Brasil, as discussões em torno dos dados tocam apenas no ponto da privacidade. Todos os esforços regulatórios, e a própria LGPD, que foi criada para ser um marco regulatório do mercado de dados, estão concentrados na “proteção” dos dados dos indivíduos frente às empresas, e nos direitos que os indivíduos têm sobre os seus dados. Esse foco é perfeitamente compreensível. Os indivíduos são, no geral, a parte mais fraca nos relacionamentos com as empresas, precisando de proteção. E os vazamentos de dados, além de representarem um risco real para as pessoas, têm muito mais cobertura na mídia do que outros assuntos relacionados com o uso de informações.

Essa visão, no entanto, é míope. Os vazamentos de dados e as violações de privacidade, em maior ou menor grau, sempre aconteceram, no Brasil e no mundo. E o custo de lidar com as consequências desses vazamentos já está em grande parte “precificado” no mercado. Empresas de todos os setores já pagam caro por sistemas de prevenção à fraude e validação de identidade que mitigam o risco econômico, tanto para elas quanto para os indivíduos, desse tipo de violação de privacidade. A legislação e a fiscalização desses incidentes, por mais importante que sejam, não vão alterar significativamente a forma como essas questões são tratadas nas corporações. Não podemos ter a Agência Nacional de Proteção de Dados (ou qualquer outro órgão regulatório) atuando como um “PROCON dos dados”, dedicada apenas a atender a reclamações de pessoas individuais, ou em tentar combater a comercialização de dados. Precisamos mudar o foco da “proteção” que está no nome da lei do indivíduo para a sociedade como um todo.

Precisamos pensar nos dados efetivamente como um recurso para a sociedade, e montar, no país, a infraestrutura de dados necessária para tirarmos o melhor proveito possível desse recurso, nos posicionando de forma vantajosa na nova economia. Montar essa infraestrutura não é trivial, mas sabemos pelo menos quais são os primeiros passos. Para começar, precisamos ter iniciativas concretas e consistentes de abertura dos dados, sem barreiras de acesso, para toda a sociedade. Todos os dados do poder público, em todos os seus níveis e esferas, precisam ser disponibilizados publicamente para que qualquer pessoa possa consumi-los. Com isso, forma-se uma base inicial de produção e distribuição de informações, sobre a qual novas empresas e aplicações podem ser construídas, desenvolvendo valor em cima de dados de forma mais dinâmica.

Essas iniciativas precisam ser complementadas pelo processo de abertura e interoperabilidade de dados setoriais que sejam de interesse da sociedade. O Open Banking, por exemplo, é um bom começo, mas está longe de ser suficiente. Os dados precisam ser mais abertos e mais interoperáveis. Deve ser possível e fácil – dado um caso de uso legítimo – o cruzamento de informações de diferentes setores da economia, para que possamos gerar cada vez mais valor para a sociedade em cima dessas informações. Esse processo, bem conduzido, permite também a redução de poder das empresas ou pequenos grupos de empresas que detém quantidades enormes de informação.

Em todo esse processo, o governo deve agir como o regulador e fiscalizador de uma política nacional unificada sobre a infraestrutura de dados, estabelecendo as regras e usando a sua força para garantir que as mesmas sejam cumpridas de maneira efetiva. A visão micro, de policiar e fiscalizar vazamentos de dados individuais é importante, mas se focarmos apenas nos direitos dos indivíduos, vamos perder talvez a mais importante oportunidade de desenvolvimento econômico e social deste século. Precisamos reconhecer a importância estratégica dos dados para o país e começar a agir no nível macro o quanto antes.

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