A inteligência artificial e a revolução dos direitos autorais

Por Fábio Martins – Prof. Doutorando em Computação – Coordenador de Governança de TIC – TJBA

Salvador, 28/02/2024 – As discussões em torno do uso da IA Generativa para replicar ou gerar conteúdo expõem a necessidade urgente de uma legislação sobre direitos de imagem e propriedade intelectual.

Diante disso, fiz uma pergunta ao ChatGPT4, IA da empresa OpenAI. De quem é a propriedade intelectual da arte produzida pela Inteligência Artificial? A resposta foi, “a natureza da propriedade intelectual depende de várias considerações, incluindo a legislação específica de cada país, a maneira como a arte foi criada, e os termos de uso do software de IA utilizado.”

Fiz a mesma pergunta ao software Gemini, IA da empresa Google e obtive a seguinte resposta, “a questão da propriedade intelectual da arte criada por IA é complexa e ainda não há uma resposta definitiva. As leis de propriedade intelectual variam de país para país e os tribunais ainda estão começando a lidar com esses casos. “

Dessa forma, a questão da propriedade intelectual (PI) em relação à inteligência artificial (IA) representa um dos principais dilemas no campo jurídico e tecnológico contemporâneo. Este desafio se concentra na determinação de como as leis de PI existentes se aplicam às criações geradas por IA, bem como na identificação de quem detém os direitos sobre tais criações, sejam eles os desenvolvedores de IA, os usuários que empregam essas ferramentas, ou a própria IA. A complexidade desse dilema reside na natureza autônoma da IA Generativa, que pode criar obras sem intervenção humana direta, levantando questões fundamentais sobre autoria e originalidade.

Vários casos jurídicos ao redor do mundo têm explorado questões relacionadas à propriedade intelectual e obras geradas por inteligência artificial. Esses casos frequentemente desafiam as noções tradicionais de autoria e propriedade intelectual, levando a debates legais sobre como as leis existentes se aplicam a tecnologias emergentes.

Stephen Thaler, em 2022, tentou patentear invenções criadas por uma IA chamada “DABUS” (Device for the Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience). Thaler argumentou que a IA deveria ser reconhecida como inventora. No entanto, o U.S. Patent and Trademark Office (USPTO), baseado em decisões judiciais anteriores, rejeitou as aplicações, argumentando que a legislação de patentes dos EUA requer que os inventores sejam humanos.

Durante seis meses, Refik Anadol e sua equipe, com a ajuda de engenheiros da empresa Nvidia, criaram um software baseado em IA, que foi alimentado com 380 mil imagens de altíssima resolução de mais de 180 mil obras de arte do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), incluindo obras de Pablo Picasso, Umberto Buccioni e Gertrudes Altschul. Isso resultou na exposição, Unsupervisioned, (“não supervisionado”, em português) que permite a geração de imagens numa tela gigante, através de uma IA Generativa que cria por vontade própria a sua arte.

No cinema, a tecnologia deepfake, que utiliza IA para criar vídeos altamente realistas em que rostos ou vozes de pessoas são modificados ou substituídos, tem sido explorada por estúdios para diversos fins. Essa tecnologia tem o potencial de revolucionar a indústria do entretenimento, permitindo novas formas de contar histórias, mas também levanta questões éticas e legais significativas. Estúdios têm usado tecnologias semelhantes às deepfakes para “ressuscitar” digitalmente atores falecidos, permitindo-lhes aparecer em novos filmes ou cenas.

A preocupação com o uso de imagens de artistas em produções que empregam inteligência artificial e tecnologias deepfake tem levado algumas celebridades a tomar medidas preventivas em seus testamentos. Entre esses artistas, Robin Williams, que faleceu em 2014, estabeleceu uma restrição ao uso de sua imagem por 25 anos após sua morte. De forma similar, a atriz Whoopi Goldberg e a cantora e atriz Madonna também incluíram em seus testamentos proibições contra o uso de suas imagens em hologramas após o falecimento, refletindo uma tendência crescente entre os artistas de protegerem sua imagem e legado na era digital.

Aqui no Brasil o comercial da cantora Elis Regina, que faleceu em 1982, foi trazida “de volta à vida” por meio de tecnologia deepfake para participar de uma campanha publicitária. Este caso gerou bastante atenção e debate sobre os limites éticos e legais do uso de IA para recriar a imagem de pessoas falecidas.

No campo da música, em 2023, o Spotify, maior plataforma de serviço de streaming de música, podcast e vídeo do mundo, removeu dezenas de milhares de músicas que segundo as apurações publicadas, foram criadas através da plataforma Boomy , que utiliza IA Generativa para a produção de músicas.

Recentemente, a autora japonesa Rie Kudan revelou um fato inusitado ao receber um dos prêmios literários de maior prestígio no Japão. Ela admitiu que teve ajuda de do ChatGPT e que a Inteligência Artificial foi responsável por 5% do seu livro. Mesmo com a revelação, durante a cerimônia, a comissão julgadora manteve a sua premiação.

A União Europeia tem demonstrado interesse em adaptar suas leis de PI para melhor refletir os avanços da IA, como evidenciado por várias iniciativas e documentos de posição que exploram como a IA se encaixa dentro do quadro de PI existente. O AI ACT, Lei que regulamenta a Inteligência Artificial, na Europa, publicada em fevereiro de 2024, pelo Parlamento Europeu, exigirá que esses sistemas sigam um conjunto de regras de transparência que incluem o cumprimento da lei de direitos autorais da UE e a criação de resumos detalhados sobre o conteúdo usado para treinar modelos de IA.

Nos Estados Unidos, a abordagem em relação à IA e propriedade intelectual tem sido predominantemente conservadora, com a lei atual favorecendo a ideia de que apenas os seres humanos podem ser autores. Isso se reflete em decisões de órgãos como o Escritório de Direitos Autorais dos EUA, que tem negado pedidos de registro de obras criadas por IA sob a premissa de que a legislação de direitos autorais requer uma contribuição criativa humana. No entanto, o debate continua, com alguns propondo atualizações legislativas para acomodar as realidades emergentes da tecnologia de IA.

No Brasil, a Lei de Propriedade Intelectual (Lei nº 9.610/98) não aborda especificamente a questão das criações geradas por IA. Tradicionalmente, a legislação brasileira de PI tem se centrado na proteção das obras criadas por indivíduos, exigindo uma contribuição intelectual direta. Isso coloca em questão como as obras geradas por IA se enquadram no atual regime de PI, uma vez que a lei não prevê explicitamente a titularidade de direitos para criações não humanas. A ausência de legislação específica para IA deixa um vácuo legal, resultando em incertezas sobre a aplicação de direitos autorais a essas obras.

Diante de todo esse contexto, eu trago a seguinte reflexão, como pode cada país elaborar suas próprias leis sobre os direitos autorais, com o uso da Inteligência Artificial, se as plataformas de conteúdo e os impactos são globais?

Para enfrentar esses desafios, a adoção de tratados internacionais como a Convenção de Berna e acordos da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) podem promover alguma uniformidade nas leis de direitos autorais, estabelecendo princípios básicos de proteção. Além disso, a criação de leis nacionais flexíveis que acomodem a evolução tecnológica e o engajamento em diálogos internacionais podem facilitar o comércio e a compreensão mútua sobre a propriedade intelectual relacionada à IA. Esses esforços conjuntos são essenciais para navegar na interseção complexa entre IA e direitos autorais em um ambiente digital globalizado.

Os EUA, a União Europeia e o Brasil estão em diferentes estágios de abordagem a esse dilema, refletindo a diversidade de opiniões jurídicas e culturais sobre a matéria. A evolução das leis de PI para abraçar as complexidades da IA será um processo contínuo, exigindo um diálogo aberto entre legisladores, juristas, tecnólogos e a sociedade.

Concluindo, o principal dilema da IA em relação à propriedade intelectual reside na necessidade de equilibrar a promoção da inovação tecnológica com a proteção dos direitos dos criadores, dentro de um quadro legal que não foi originalmente concebido para abordar as nuances da criação autônoma por IA.

Referências.
ABRÃO, E. Y. Comentários à lei de direitos autorais e conexos: Lei 9610/98 com as Alterações da Lei 12.853/2013, e jurisprudência dos Tribunais Superiores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. 352p.
BRANCO, Sérgio. O domínio público no direito autoral brasileiro: Uma Obra em Domínio Público. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2011.
CANTALI, Fernanda Borghetti. Inteligência artificial e direito de autor: tecnologia disruptiva exigindo reconfiguração de categorias jurídicas. Revista de Direito, Inovação, Propriedade Intelectual e Concorrência, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 9, jul./dez. 2018. Disponível no link. Acesso: 20 fev. 2024.
CARBONI, Guilherme. Direitos autorais e novas formas de autoria: processos interativos, meta-autoria e criação colaborativa. Revista de Mídia e Entretenimento do IASP, São Paulo, ano I, v. 1, jan./jun. 2015. Disponível no link. Acesso: 20 fev. 2024.

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