Fragmentando a Internet: a consequência não intencional da regulação

Konstantinos Komatis, Diretor e Desenvolvedor de Políticas da Internet Society

No início do ano 2000, em Paris, dois grupos antirracistas processaram o Yahoo com base no fato de que o site de leilão estava expondo os franceses a mais de mil objetos da memória nazista. Em maio daquele ano, um tribunal francês confirmou a ilegalidade da venda sob a lei local, alegando que a empresa havia ofendido a “memória coletiva” do país. Mais importante do que isso, o juiz também ordenou que o Yahoo identificasse maneiras de bloquear usuários franceses de seu site nazista ou outros sites do provedor com conteúdo considerado racista.

O caso chamou a atenção devido ao precedente legal que poderia estabelecer em relação ao direito de um país de atravessar fronteiras e impor suas próprias leis aos conteúdos online armazenados em outros países. Na época, o advogado do Yahoo expressou sua esperança de que “outros países (não) seguissem o mesmo caminho”.

Avançamos 18 anos e hoje a Internet passa por uma intensa fase de regulação com efeitos semelhantes desse caso do Yahoo. Quase todos os países atualmente visam como “regular a Internet”, e é importante um esclarecimento neste estágio. “Regulação da Internet” é uma frase um tanto carregada e mal orientada. Na realidade, o que a maioria dos atores estatais procura resolver são questões de comportamento anticoncorrencial, moderação de conteúdo ou manipulação de dados pessoais. Nenhuma dessas questões ocorre literalmente “na Internet”. Pelo contrário, elas acontecem na camada de aplicações da Internet – o que nos referimos como World Wide Web (www, sigla comum e digitada diariamente – milhares de vezes). Entretanto, esta é uma discussão que merece uma outra nota.

No entanto, a regulação da Internet pode ter consequências não intencionais. Uma delas é a aplicação extraterritorial. Isso é particularmente importante para o que significa uma Internet global e resiliente. A Internet não foi desenvolvida para reconhecer limites físicos ou cumprir as regras de apenas um ator. Ela não estava sendo anticonformista – apenas não era relevante. A resiliência é garantida pela diversidade na infraestrutura e essa diversidade vem de (diversos) nós localizados globalmente, em diferentes partes do mundo. Quanto maior a pressão para tentar fazer a Internet se encaixar dentro das fronteiras nacionais ou para torná-la compatível com o pensamento normativo de uma nação com o objetivo de manter algum senso de controle, mais nos arriscamos a sabotar a diversidade que é crítica para sua resiliência e natureza global. A aplicação extraterritorial de leis pode fornecer incentivos errados para que os atores estatais participem de uma corrida regulatória que resultará apenas em uma Internet fraturada e menos resiliente.

Tribunais, advogados internacionais e acadêmicos estão familiarizados com a noção de extraterritorialidade como uma manifestação em evolução da soberania estatal que, historicamente, passou por uma constante transformação buscando se adaptar a um sistema internacional em contínua mudança. Com a Internet, este ritmo se intensificou.

O principal desafio nesse caso é que a Internet é global, então regulações e decisões judiciais que a afetam podem ter efeitos extraterritoriais. Há duas questões que buscamos avançar como parte de nossa nota conceitual “A Internet e os Efeitos Extraterritoriais das Leis”.

·         Quão cuidadosos são os Estados sobre como evitar impactos prejudiciais e desnecessários fora de suas fronteiras?

·         Como eles podem minimizar esses efeitos negativos?

A maneira pela qual esta nota conceitual usa o termo extraterritorialidade, refere-se à aplicação das leis de um país a pessoas, condutas ou relações fora desse país. A globalização intensificou tanto a quantidade de interações transnacionais quanto o interesse dos Estados em regulá-las. Mas, quando se trata da Internet, as coisas são um pouco mais complexas; embora acidentalmente, a globalização é uma característica da Internet, não um bug, e sistemas legais em qualquer lugar devem reconhecer isso, e não tentar “consertá-lo”.

Precisamos tomar decisões que exerçam jurisdição extraterritorialmente de forma a permitir que a Internet evolua como uma tecnologia aberta, globalmente conectada, segura e confiável para todas as pessoas. Entretanto, quando uma lei não especifica seu alcance geográfico, quais limites (se há algum) os tribunais poderiam colocar em sua aplicação?

Para responder a essa pergunta, precisamos primeiro entender o link causal entre progresso social e econômico e a Internet. A Internet tem como premissa um conjunto de propriedades fundamentais, incluindo abertura, inovação, inovação sem permissão, interoperabilidade, colaboração e concorrência. Essas propriedades permitem que a Internet seja um motor de novas economias emergentes, para aproximar sociedades e permitir novas formas de expressão política. Estas são conhecidos como “invariantes da Internet” porque sem elas a Internet não seria como conhecemos e usamos hoje.

Infelizmente, em muitos casos, os responsáveis pela tomada de decisões estão impondo regras que se espalham pela Internet em outros lugares, dificultando a inovação, impedindo o investimento em seus próprios países e arriscando um novo “hiato digital”. É só olhar para o anexo da nota conceitual para ver como a atividade regulatória é esmagadora.

A nota, na realidade, não sugere que a regulação não deva acontecer. Regulações e normas são uma prerrogativa dos Estados-nação e atores estatais têm a responsabilidade de defender os interesses de seus cidadãos. No entanto, existe um argumento válido de que muitos dos problemas associados com a aplicação extraterritorial de leis podem ser mitigados se as partes interessadas estimularem abordagens descentralizadas e colaborativas, incluindo processos de desenvolvimento de normas internacionais. Tais processos e estruturas podem criar melhores resultados, porque têm uma participação mais ampla, são mais responsivos politicamente e economicamente sustentáveis do que outras abordagens top-down.

Muitas vezes falamos sobre a importância da colaboração na Internet. Nesse caso específico, devemos colaborar para evitar coisas como inconsistência, ações descoordenadas, fragmentação e tensão internacional, apenas como exemplos. Nosso pensamento mostrou que todas essas consequências não intencionais podem ser reais em um ambiente onde os Estados-nações buscam regular a Internet global.

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